domingo, 27 de novembro de 2011

Fafe e Teresa Salgueiro - Antes cá do que lá

Fafe – Antes cá do que lá


Este é chão de emigrantes. Alguns voltaram ricos do Brasil, outros permaneceram lá fora, contrariados. Todos deixaram memórias, testemunhos extraordinários. Adicione-se a hospitalidade dos que ficaram, a natureza em volta e a gastronomia minhota, e aí temos. O lugar perfeito para dois dias de andanças com Tereza Salgueiro, que prepara o novo álbum enquanto ainda leva pelo mundo o espectáculo Voltarei à Minha Terra.
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Nem de propósito se achava sintonia melhor. Tereza Salgueiro é, na verdade, natural de Lisboa.
Mas o que aqui importa é a “minha terra” em sentido largo. E então falamos do valor das coisas que cá temos, das qualidades humanas, das praias, dos campos e montes, da nossa cultura e das heranças variadas, transmitidas pelos séculos dos séculos.
Em contexto de aperto nacional, estas reflexões ganham outro peso. E logo pela manhã, junto à barragem de Queimadela, à sombra de carvalhos, pinheiros e choupos, a voz grave de Tereza converte a sua inquietação sobre o mundo numa espécie de serenidade, gentileza que condiz com a frescura ambiente e contagia quem a ouve. “Sabemos que não estamos no caminho certo.
Continuam a praticar-se atrocidades, há uma grande desigualdade na distribuição da riqueza. Mas acho que vamos confrontar-nos com a necessidade de mudar. Temos de encontrar uma forma de olhar e entender o mundo que inclua estarmos em contacto uns com os outros.” E quanto a nós, portugueses: “Espero que voltemos a aprender o que somos, a conhecer o nosso talento”.
Todos os cenários se adequam ao tema. Por exemplo, este passeio pedestre pelo Trilho Verde da Marginal, um entre muitos disponíveis na região. Percorre levadas e caminhos de pedra contorna a barragem, passa por espigueiros e atravessa a Aldeia do Pontido, o paraiso onde estamos alojados. Em fundo, o ruído constante do Vizela ali tão perto, o afluente do Ave que galga penedos de granito, abre piscinas verde-esmeralda e anima moinhos de água.
Mas o cenário pode ser também a exposição de artesanato e a conversa com Maria de Fátima Nogueira, que aos sete anos já fazia tranças de palha, das mesmas que agora costura com mestria para confeccionar cestos e chapéus. Ou o almoço de produtos da terra regado a vinhos verdes que Vera Lima, da Vinhos Norte, vai distribuindo consoante os pratos: o branco Alvarinho de Monção para harmonizar as gorduras das entradas de pataniscas e de chouriça com grelos, um Vinhão, tinto e encorpado, servido na malga tradicional que ele tinge de vermelho granada para honrar o cabrito em forno de lenha e as couves salteadas
com broa e feijão, e um Espadeiro para a sobremesa, doces de gema e pêra bêbeda. Velhos ritos urbanos
Mas é quando, já no centro da cidade, ouvimos os relatos de Isabel Ferreira Alves, do Museu das Migrações e das Comunidades, que o círculo se fecha e estes dias adquirem um vínculo especial.
Partimos da Praça 25 de Abril, seguindo depois, por ruas e praças ao sabor da tarde, as explicações tranquilas de Isabel. Conta histórias de edifícios, do Jardim do Calvário, da insólita estátua “Justiça de Fafe” e, fascinantes entre todas, as de muitos “brasileiros de torna-viagem”. Tereza, ela mesma portuguesa um pouco itinerante, vai perguntando. E assim, como é hábito, de empatias variadas se faz a boa conversa. Alguns dos oito mil fafenses que emigraram para o Brasil entre os anos trinta do século XIX e os do século XX enriqueceram por lá, e nem sempre de forma edificante (negócios com escravos, por exemplo, foram uma das fontes de fortuna). Depois regressaram à terra, e deu-lhes para a caridade. Construíram palácios, palacetes e chalés, é certo, mas também igrejas, escolas, asilos para crianças e idosos, hospitais e indústrias que animariam a economia da região.
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A exposição de Gérald Bloncourt, que na França dos anos 70 fotografou imigrantes portugueses nos bidonvilles, mostra no museu outra face dessa histórica fatalidade que levou tantos fafenses de outros tempos a procurar longe uma alternativa à fome. Uma citação do autor diz: “Nota-se que é uma grande civilização, que […] descobriram o mundo e trocaram contactos. É um povo com muito orgulho. […] Fui o fotógrafo da esperança, da dignidade nos olhos destas pessoas”.
Expostos estão também, no Museu da Imprensa, exemplares antigos dos muitos periódicos locais, mostrando não ser só nas grandes cidades que os portugueses gostavam de notícias frescas. O Desforço, que durou de 1892 a 2000, O Fafense, O Tagarela, A Democracia, e outros. E há velhas máquinas de composição tipográfica, então maravilhas da técnica que hoje parecem enormes e desajeitadas.
Tereza, a destemida. O jantar é mesmo ali ao pé, no Doce Abrigo, e já nas entradas de azeitonas aromatizadas com alho e camarões com presunto se mantém a conversa solta. Segue-se um polvo à lagareiro e, como sobremesas, sopa dourada e doce de figos. O restaurante está por nossa conta, e no fim Tereza aceita tirar fotografias com o pessoal da casa. O mesmo sorriso franco, a boa disposição de sempre. Se está cansada, não parece. Na manhã seguinte visitamos Aboim, aldeia de 354 habitantes com vistas espantosas sobre os montes em volta, o singular moinho de vento, único na região, e o museu, instalado numa antiga escola. Segue-se a Doçaria de Fornelos, de onde acaba de sair meia fornada de respeitáveis pães-de-ló e onde conhecemos o laborioso processo manual que desenha nos doces de gema sedutoras curvas de açúcar.
O almoço no Pinto da Costa tem novos vinhos verdes a acompanhar as entradas de presunto e de fígado – Tereza gosta deveras desta última, o que estimula piadas e arrepios sobre estranhas experiências culinárias mundo fora –, a vitela assada à moda de Fafe, o pudim abade de Priscos e o leite-creme queimado. Depois de tamanho repasto, só mesmo nova caminhada, e esta acontece no complexo turístico Rilhadas, que trouxe à região uma oferta variada de desportos de aventura e natureza. Ali também se pode vestir um fato especial, colocar um capacete e ir acelerar para uma pista de karts. O mais espantoso é que Tereza nem conduz, embora vá repetindo, a rir, “tenho de tirar a carta”. Já ontem, na visita ao Museu Regional do Automóvel, se sentou ao volante de carros antigos e parecia no seu elemento. Mas esses, embora elegantes, estavam estacionados. Quanto a esta miniatura desportiva, não só acelera bastante como se enerva um bocado nas curvas. E a nossa cantora lá vai, determinada. Pois o facto é que domina a máquina sem problemas e regressa mais divertida ainda.
Havemos de estabelecer ligações entre as pequenas aventuras destes dias e o momento que ela atravessa agora, preparando um projecto original (a propósito, vai ficar mais uns dias por aqui, aproveitando o sossego para trabalhar em novas canções), seguindo um caminho muito seu. Isso será no curto descanso, antes de mais um jantar sumptuoso, para despedida, ali mesmo na Taberna do Rilhas: rojõezinhos e polvo com molho verde, seguidos de bacalhau com broa, com batata a murro e legumes. A voz magnífica.
Por estes dias, num fim de tarde fora do tempo, vivemos um instante de magia pura, um desses presentes inesperados que unem almas em comoção.
O caso dá-se quando visitamos o Teatro-Cinema, criado por José Summavielle Soares e um dos últimos legados dos “brasileiros”. Foi inaugurado em 1924 e por ele passaram das melhores companhias do país (Aura Abranches, Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro, Maria Matos), numerosos filmes e alguns comícios de oposição ao regime salazarista. O edifício esteve fechado ao público entre 1981 e 2001 e quase foi convertido em centro comercial. Um movimento de cidadãos conseguiu impedir a tragédia e o velho teatro foi então recuperado e acrescentado, mantendo agora também um espaço subterrâneo polivalente, a sala Manoel de Oliveira.
Depois do espanto diante de tão nobre fachada, vamos conhecer o interior, belíssimo, onde Tereza daria um concerto no âmbito do ciclo Concertos Íntimos, organizado pela Câmara de Fafe. Mas talvez pelas histórias que agora ouvimos, ou então só porque sim, anda no ar um certo tom de tristeza, como aquela que é matéria da poesia. Tereza sobe ao palco, com o mesmo ar curioso de quem observa as pinturas no tecto. Nós, os outros, cansados das andanças do dia, usamos para uma pausa as cadeiras almofadadas da plateia. E é então que Tereza experimenta a sala como só ela sabe. A voz ergue-se, segura e limpa, e encontra a de Amália em Abandono (poema de David Mourão Ferreira dirigido aos presos políticos em Peniche). “Por teu livre pensamento/ Foram-te longe encerrar/ Tão longe que o meu lamento/ Não te consegue alcançar/ E apenas ouves o vento/ E apenas ouves o mar […] Oiço apenas o silêncio/ Que ficou em teu lugar/ E ao menos ouves o vento/ E ao menos ouves o mar.” E ali ficamos, em transe solene. Nós na plateia e ela no palco a cantar, exactamente como Deus quer.



Fonte:
Fernanda Pratas (Revista UP // TAP AIR PORTUGAL)


Promoçao de comportamentos de vida saudável e feliz.

3 comentários:

  1. ao ler este artigo , nao quiz deixar de comentar ,Primeiro porque é uma das minhas vozes favoritas s,segundo porque com esta voz se divulga tambem um dos sitios mais giros que pdemos ver na "nossa terra":Conheci este local ,através dos Montes Longos e desde logo fiquei apaixonada...é realmente paradisiaco! E que bela ideia juntar a Voz de Tereza Salgueiro a estas imagens ...O cristalino das águas mais o critalino da sua voz , farao ,concerteza, uma dupla inolvidavel...belissima ideia a divulgaçao deste artigo!!
    Nós saboreá-lo-emos por cá ...enquanto não podemos ir até lá!
    Obrigada!
    Teresa Pereira

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  2. Obrigado Teresa pela "melodia" das suas palavras.
    Quando se conjuga, diria, como por magia, a beleza incomensurável de uma regiao, com uma das vozes mais encantadoras do pais... o resultado é perfeito!

    Com a brisa da montanha,
    1 Abraço sempre amigo,
    F. Beça

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  3. Bem decumentado, obrigada pela voz que brilha nessa brisa da montanha, a sua linda voz.
    Um abraco ,
    Helena Filipe

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